As estatísticas convencionais de renda subestimam a desigualdade
Para especialistas, Brasil leva a sério demais a alcunha de celeiro do mundo. A pandemia acelerou ainda mais o processo de desindustrialização do país, enquanto engendram-se esforços no sentido de privilegiar o setor agrícola para exportação de alimentos, minério e energia. De 2013 a 2019, o país perdeu 28.700 indústrias e 1,4 milhão de postos de trabalho no setor.
“Sou o terceirizado, do terceirizado, do terceirizado do Mercado Livre”. É assim que um amigo de 39 anos (que pediu para não ter o nome divulgado, mas que chamaremos de João), explica sua situação trabalhista. Demitido da CSN em 2019, o ex-metalúrgico tem uma rotina semelhante à do personagem principal do filme “Você não estava aqui”, de Ken Loach. Sai de casa às 6h da manhã para encarar a fila de entrega do galpão. Quanto mais pacotes ele consegue despachar, mais ele recebe, o que significa que não há horário de almoço e, com frequência, conta com um ajudante para acelerar as entregas.
A diferença entre ficção e realidade é que, ao contrário do personagem do filme, João não comprou a ideia de que ele é seu próprio patrão, por ter se tornado MEI (microempreendedor individual): “Não me sinto empreendedor.”
Hoje ele faz parte do grupo de trabalhadores jovens, altamente escolarizados e frustrados com as expectativas de emprego e melhoria de condições de vida, que o sociólogo Giovanni Alves chama de precariado.
Mas afinal, como definir essa classe social, se é que pode ser assim rotulada?
No período inicial, dominado por financistas e rentistas, uma nova classe global começou a tomar forma. Ela foi forjada na promessa de ascensão social através da educação e do emprego. Porém, no meio de uma transformação globalizadora, a dolorosa construção de uma economia de mercado mundial conduziu essa massa trabalhadora para outros destinos.
A mudança mais perceptível começou na década de 1980, com uma visão de mercados abertos e liberalizados. De forma implícita, as estratégias e medidas foram desmantelando as instituições sindicais, e com isso tornando as negociações trabalhistas ainda mais tendenciosas e precarizantes, com a justificativa de um incremento exponencial de postos de trabalho capazes de absorver a demanda crescente por emprego e renda. Esse “boom” jamais ocorreu.
Crucialmente, a integração da China e de outras economias emergentes no mercado de trabalho mundial acrescentou 2 bilhões de trabalhadores à oferta global, a maioria deles acostumada a ganhar um quinquagésimo do que os trabalhadores da O.C.D.E. (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) recebiam. Como a produtividade pode aumentar mais rapidamente nas economias de mercado emergentes, desde então, tem havido uma pressão descendente sobre os salários em todos os países da O.C.D.E.
Isso foi intensificado por políticas de flexibilidade de trabalho e a revolução do silício que facilitou a realocação da produção e do emprego para onde os custos eram mais baixos. Tudo isso moldou uma estrutura de classes global sobreposta às velhas estruturas nacionais.
Um novo sistema de classes
No topo da pirâmide estão uma plutocracia e uma elite, ganhando dividendos e detendo um enorme poder político. Bem abaixo deles, em termos de renda, está uma classe média-alta, um grupo cada vez menor composto por servidores públicos do alto escalão e de empresários de médio porte bem sucedidos. Ao lado deles, em termos de renda, está um grupo crescente de profissionais, que não buscam segurança no emprego, mas ganham dinheiro freneticamente, principalmente no ramo da tecnologia, sempre ameaçados pelo esgotamento.
Abaixo, vem o antigo núcleo da classe trabalhadora, o proletariado, para quem os sindicatos trabalharam e para quem foram construídos os estados de bem-estar social. A norma geral era trabalho de tempo integral, estável por anos ou até décadas, com direitos vinculados à formalidade do contrato de trabalho. Esse grupo encolhe numa velocidade espantosa.
Abaixo, em termos de receita, o precariado está crescendo. Não representa uma classe inferior; o capitalismo global requer uma força de trabalho com suas características essenciais. Podemos afirmar então que o precariado é uma classe em formação, senão, ainda uma classe para si, no sentido marxista do termo.
Sem tempo
Claro, há mais trabalho de meio período, contratos de curto prazo, estágios e diversas outras plataformas digitais, incluindo as de trabalho coletivo, por exemplo. Todavia, mais significativamente, o precariado não tem identidade ocupacional ou narrativa para dar às suas vidas. Isso cria insegurança existencial e acompanha o fato de que, pela primeira vez na história, muitas pessoas têm uma educação muito acima do nível de trabalho que podem esperar obter.
Além disso, o precariado vive endividado, o que representa uma forma eficiente de mantê-los presos ao sistema, fornecendo a massa trabalhadora que o capitalismo global necessita. Com ganhos incertos e voláteis, eles estão constantemente à beira de dívidas insustentáveis. Isso significa, entre outras coisas, que a renda líquida está bem abaixo do faturamento bruto. As estatísticas convencionais de renda subestimam a desigualdade.
Em suma, o precariado vive na incerteza econômica, geralmente com dívidas insustentáveis, crônicas, em que um choque macroeconômico, decisão equivocada ou doença pode derrubá-los para uma subclasse, ficar à deriva na sociedade e provavelmente retornar para a casa dos pais, isso quando possível.
O rápido crescimento do precariado está gerando instabilidades na sociedade. É uma classe perigosa porque está dividida internamente, levando à vilanização de imigrantes e outros grupos vulneráveis. E, na escassez aguda, seus membros podem ser suscetíveis aos gritos do extremismo político.
O caminho perpassa uma nova política, em que a redistribuição e a segurança de renda sejam reconfiguradas e em que os temores e aspirações do precariado sejam tornados centrais para uma estratégia progressista.
“Não imagino o que seria de mim e da minha família se não fosse meu pai e a aposentadoria do INSS dele”, afirma João, e conclui: “Se nada mudar, vamos acabar voltando a ser todos fazendeiros”.
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