Quando a tia do zap é você
Você acorda, pega o seu telefone celular e dá uma passada de olho pelos 100 grupos de Whatsapp que você participa, mas pouco interage. Entre as várias correntes religiosas que você repassa (e não só olha) para 15 pessoas especiais caso ame Jesus Cristo e toda sorte de figurinhas animadas de “Bom dia Grupo!”, você se depara com a seguinte notícia: “QAnon - Donald Trump está travando uma guerra secreta contra uma cabala de pedófilos canibais na elite do governo, no empresariado e na imprensa.”
A mensagem contendo a notícia está marcada com uma seta dupla, como "encaminhada com frequência”.
No momento em que se discute intensamente liberdade de expressão, as consequências do
ativismo digital e o papel do Estado na regulação da mídia como “proposta” de alguns presidenciáveis, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a prisão preventiva e a extradição do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos. A
ordem de prisão foi dada por Moraes no dia 5 de outubro, e a ordem de extradição já chegou ao Ministério da Justiça. Allan dos Santos encontra-se atualmente nos Estados Unidos.
Por falar dos norte-americanos, documentos internos vazados por funcionário do Facebook, expõe e dissecam o seu próprio papel e o da rede social nas eleições de novembro do ano passado no país. Sequer podemos afirmar se houve, de fato, um desfecho do assunto: pesquisas mostram que apoiadores do ex-presidente Donald Trump ainda acreditam e publicam materiais no sentido de que não houve lisura no certame.
Documentos obtidos pelo The New York Times dão uma nova visão sobre o que aconteceu dentro do Facebook antes e depois das eleições de novembro, quando a empresa foi inundada de posts de usuários fazendo uso da plataforma para espalharem informações, muitas vezes inverídicas, sobre a votação, as famosas “fake news”.
Os documentos mostram que os funcionários da rede social dispararam vários alertas aos superiores acerca da disseminação de desinformação e conspirações antes e depois da contestada eleição presidencial americana. Ainda no mês de novembro de 2020, poucos dias após o sufrágio, um analista de dados escreveu aos seus colegas de trabalho que 10% de todas as opiniões dos EUA sobre questões políticas (uma em cada dez – percentual expressivo) era de que a eleição foi fraudulenta.
Porém qual o papel, se de fato há algum, das redes sociais na disseminação de fake news como essa?
Sempre é bom lembrar que a companhia de Mark Zuckerberg é dona dos quatro aplicativos mobile mais baixados em dispositivos da década, sendo eles o Messenger, o WhatsApp, o Instagram e o próprio Facebook. Uma informação interessante é que Mark é usuário do Signal, um aplicativo de mensagens instantâneas concorrente do desenvolvido pela sua empresa. A informação foi descoberta após o recente vazamento que expôs dados pessoais de 533 milhões de usuários do Facebook. Fica a dica!
Falando especialmente do Brasil, um estudo divulgado pelo Cuponation¹ no mês de janeiro de 2021 mapeou os hábitos dos brasileiros nas redes sociais e revelou que, ao longo do ano de 2020, os brasileiros investiram cerca de 5 horas por dia em sites e programas de interação com outras pessoas. De acordo com o levantamento, o aplicativo mais usado em terras tupiniquins é o WhatsApp, onde nós passamos cerca de 30 horas por mês. Já a segunda posição fica com o Facebook, atraindo aproximadamente 15 horas mensais da atenção dos usuários.
Seja para uso corporativo, distração, carência afetiva ou simplesmente ócio, a magnitude de tempo arrastando a tela do celular para atualizar o feed, cria o ambiente propício para proliferação de notícias, sejam elas verdadeiras ou falsas.
Por exemplo: uma pesquisa desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)², aponta que 73,7% das informações e notícias falsas sobre o novo coronavírus circularam pelo aplicativo de troca de mensagens WhatsApp. Outros 10,5% foram publicadas no Instagram e 15,8% no Facebook. Os dados fazem parte de um trabalho da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), com base nas notificações recebidas entre os dias 17 de março e 10 de abril pelo aplicativo “Eu Fiscalizo”.
Na política, as fake news desempenharam um papel significativo no rumo da eleição de 2018, que teve como vencedor o atual presidente Jair Messias Bolsonaro, filiado ao PSL na época. Para entender essa hipótese, em termos metodológicos, podemos observar três fake news que se viralizaram nas redes sociais digitais brasileiras na época da eleição presidencial de 2018, as quais foram levantadas através das ferramentas de pesquisa Google Trends e Buzzsumo.
1. Kit Gay
Fake: Circularam pelas redes sociais digitais fotos, vídeos e textos que atribuíam ao candidato Fernando Haddad (PT), ex-ministro da educação do governo Lula, a criação do kit gay para crianças. Em agosto de 2018, em entrevista ao Jornal Nacional (principal telejornal brasileiro), Jair Bolsonaro afirmou que um livro chamado “Aparelho Sexual e Cia” estava dentro do material distribuído pelo kit gay.
Fato: Aquilo a que o presidente Bolsonaro chamou kit gay fez parte do projeto Escola sem Homofobia do governo do PT. Ele teria como fim a formação de educadores e não tinha previsão de distribuição do material para alunos. O programa, no entanto, não foi posto em prática.
2. Fraude nas urnas
Fake: Vídeo falso mostrou uma fraude na urna eletrônica: ao digitar o número “1”, o aparelho “preencheria” o voto automaticamente no candidato Fernando Haddad (número 13). O vídeo foi impulsionado por Flávio Bolsonaro em seu perfil no Twitter. Jair Bolsonaro é conhecido por desacreditar as urnas eletrônicas.
Fato: O vídeo na verdade era uma montagem. Diante da enorme difusão das imagens nas mídias sociais, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) afirmou à época que não havia indícios de fraude. A questão virou PEC. A Câmara dos Deputados decidiu no dia 10/08/2021 rejeitar e arquivar a proposta de emenda à Constituição que propunha o voto impresso em eleições, plebiscitos e referendos.
3. Jesus é travesti
Fake: Propagaram-se nas redes sociais digitais uma imagem em que a então candidata a vice-presidente de Haddad, Manuela D'Ávila (PCdoB), aparecia com uma camiseta com os dizeres “Jesus é travesti''.
Fato: Manuela usou o Twitter para mostrar a imagem falsa ao lado da original, que tinha a palavra “rebele-se”.
Sem adentrar qualquer viés ideológico, visto que até onde sei, notícias falsas não tem alinhamento político, sendo mineradas por destros e canhotos, o que devemos avaliar é até que ponto a responsabilidade tem que ser atribuída às redes sociais ou plataformas de trocas de mensagens onde as mensagens são veiculadas. Ouvimos e vimos de tudo, até mesmo o banimento do acesso a determinadas redes sociais em alguns países, num frenesi digno da inquisição espanhola, quando queimou 5.000 manuscritos árabes em Granada em 1499. Numa observação objetiva, ao demonizar a ferramenta e não o agente, condenaríamos o carro e não o motorista bêbado ao volante.
O que se faz necessário urgentemente é diferir: Opinião não é argumento, não é fato. Temos direito consagrado a ter opiniões e nos expressarmos na mesma medida do dever ético de apenas assim reconhecê-la. O pior ocorre quando crenças se consubstanciam em opinião e são usadas para substituir argumentos. Argumento não é uma contenda, nem um desacordo entre as pessoas. Um argumento é uma busca pessoal pela verdade. Pelo fato de sempre haver uma tensão entre verdade e persuasão, as dificuldades surgem.
Assim, se o argumento é o processo de persuadir um grupo de pessoas através da verdade, a retórica, no sentido pós-moderno, é o processo de converter essa verdade no que quiser. A verdade aí é um elemento secundário, o meio é mais importante que o fim: a propaganda maciça, o discurso político, a mídia tendenciosa e sobretudo as fake news estão nesse compartimento.
Um aliado perverso é a “ilusão de profundidade explicativa”, quando as pessoas acreditam que sabem muito mais do que realmente sabem, e o que lhes permite persistir nessa crença é a ressonância em outras pessoas. Depois da entrada em circulação da crença, seja numa rede social, num jornal, ou no antigo boca-a-boca, dificilmente sabemos dizer onde o nosso entendimento termina e o do outro começa.
Em 2022 teremos um evento importante para o país, num momento econômico e social muito delicado. Com base nos dados que apresentei aqui, talvez as redes sociais tenham um papel ainda mais preponderante no resultado. Seja ele qual for, precisamos desenvolver maior maturidade digital, tendo consciência de que todo tiro ou clique, só ocorre se algum dedo acionar. Não culpe só a tia do zap, pois todos somos ela.
1. Fonte: https://www.cuponation.com.br/insights/temponasmidias-2021
2. Fonte: http://pesquisa.ensp.fiocruz.br/
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